I
no princípio
era a tela
e o menino
no princípio
no princípio
era a cor
e o desatino
no princípio
no princípio
era a cor sozinha
e a tela toda branca
no princípio
no princípio
era o começo
do princípio
no futuro
que atravanca
era o começo de minas
era a promessa
de bruma que perpassa
e permanece
era o coro dos anuros
era a canção do brejo
a condenação
dos impuros
de além-tejo
II
graves acordes
de cores e trinados
logo estarão na tela
e estarão na tela
as marcas da magia
e estarão na tela
as tropas e os regalos
que levados pelas trilhas
e terçados
hão de pôr eternidade
nos cerrados
III
serão traços na tela
são traços
serão cores na tela
são cores
agora todos
condenados
agora todos
capturados
agora todos
organizados
pela mão que aprisiona
a fímbria de luz que perpassa
pela mão que agora toma
de assalto os mortos da praça
IV
que vem de lá
com essas tintas
com essas cores e retretas?
quem vem de lá
com esses baldes
de bruma densa entornando?
quem vem de lá
com esse leite
que espreguiça sobre a tela?
quem vem primeiro?
o olho ou a remela?
o santo ou a capela?
a rosa adornando
o morto? Ou a lapela?
quem vem de lá (yon)
com essas tintas?
e o que falas
quando pintas?
V
são traços agora condenados
à vida eterna pela graça
da mão que aprisiona
a fímbria de luz que perpassa
pela mão que agora toma
de assalto os mortos da praça
livres de toda ameaça
e de toda trapaça
e de toda devassa
e do impiedoso dente
da impiedosa traça
são traços na tela
são traços
são cores na tela
são cores
são túmulos, ogivas e capelas
são beatos e brumas e novelas
e são veredas antigas
e cancelas
são desejados seios
de donzelas
desesperados arreios e fivelas
(tudo renasce na tinta
que nivelas!)
assim os mortos que ainda
estarão vivos nessa praça
renascerão contigo livres
de todo esquecimento
e de toda ameaça
VI
um primeiro morto
renasce dessas tintas
um recorte põe na tela
a espádua enorme
o braço do enforcado
quando pintas
ressurge do teu traço
que não dorme
o dorso do enforcado
é como a lua
que sai do quadro
enfeitiçando a rua
o segundo morto
é uma donzela
com seus trinta cabelos
inundando o quadro
com duzentos olhos
baços de esperança
e três eternidades
de promessa
o segundo morto
era a verdade
a bruma que haveria na cidade
um terceiro morto renasce
e tem meu nome
escrito numa folha
e tem meu rosto
gravado numa tábua
e tem meu verso
cravado numa tela
que resvala
entre brumas
e promessas
um derradeiro morto
é a mão do carrasco
e é de todos
a que será lembrada
no teu quadro, Layon,
que me condena
para longe de todos
que estarão na tela
sobretudo
pelo verso
que não faço!